Talvez o mais perigoso em automatizar decisões não seja errar a execução, mas repetir raciocínios que já deveriam ter sido deixados para trás.
Muita gente acredita que colocar a IA para negociar é um salto tecnológico. E, em parte, é mesmo. Mas poucos percebem que, por trás dessa automação, continuam rodando as mesmas ideias antigas que sempre orientaram nossas escolhas econômicas. A diferença é que agora tudo acontece mais rápido, mais longe dos olhos e com menos chance de revisão.
Porque automatizar uma escolha não significa apenas deixar de clicar num botão. Significa aceitar, sem perceber, as ideias que vêm junto com essa escolha. Algumas delas fazem sentido. Outras, a gente só continua rodando por inércia. E talvez o problema esteja justamente aí, no que ninguém mais parou para revisar.
1. A falsa estabilidade de um jogo bem equilibrado
Muita gente já ouviu falar no tal “equilíbrio de Nash”. É aquele conceito da teoria dos jogos que diz, em resumo, que se cada parte envolvida fizer o que for melhor para si, levando em conta o que os outros também vão fazer, ninguém tem motivo para mudar de estratégia. Parece uma ideia sólida. E é. No papel.
Esse tipo de raciocínio virou base para vários modelos de negociação automatizada. Mas o mundo real não é tão comportado quanto a teoria gostaria. Nas cadeias de suprimentos, por exemplo, as partes envolvidas nem sempre têm todas as informações. Nem sempre agem de forma previsível. E nem sempre querem exatamente a mesma coisa.
Às vezes o fornecedor aceita uma condição pior porque quer manter a parceria no longo prazo. Às vezes o comprador paga mais para garantir estabilidade num momento crítico. Há confiança envolvida, memória de outras negociações, contexto político, urgência, reputação. Nada disso entra no modelo.
O risco de aplicar esse tipo de lógica com IA é que ela vai buscar esse equilíbrio de forma cega, como se ele fosse sinônimo de uma boa decisão. Mas o equilíbrio, nesse caso, pode ser ilusório. Ele pode mascarar relações desequilibradas, escolhas apressadas ou concessões que ninguém queria fazer.
Negociar bem não é só encontrar um ponto estável. É entender o que está em jogo para cada parte e por que, naquele momento, o que parece racional no papel pode não ser o melhor acordo.
2. Contratos inteligentes, incentivos inadequados
Muito se fala sobre contratos inteligentes. Documentos autoexecutáveis, acionados por condições claras e protegidos por blockchain. Parece moderno. E, tecnicamente, é. Mas o problema não está na tecnologia. Está nas regras que ela está programada para seguir.
A maioria dos contratos automatizados ainda funciona com uma lógica bem simples: se tudo correr conforme o combinado, a ação é liberada. Se alguma coisa sair do padrão, vem a penalidade. Isso funciona quando as variáveis são estáveis. Mas em operações reais, quase nada é tão previsível assim.
Um fornecedor pode atrasar uma entrega porque foi afetado por um desastre natural. Uma transportadora pode furar o prazo porque teve um bloqueio logístico não previsto. E ainda assim, a IA vai aplicar a multa, acionar a cláusula, seguir a regra, sem perguntar se a situação fazia sentido.
Além disso, há o risco de incentivos mal calibrados. Se a IA entende que a única coisa que importa é o menor custo, ela vai forçar desconto até onde der. Se só interessa bater meta de prazo, ela pode ignorar a qualidade ou a viabilidade do fornecedor. O problema não é o contrato ser automático. É o contrato ser raso.
Programar um sistema para agir automaticamente é também uma forma de legislar. É escolher o que vale mais, o que será tolerado, o que merece punição. E isso exige uma sensibilidade que os modelos nem sempre têm. Automatizar regras sem revisar os princípios pode transformar eficiência em descuido institucional.
3. Quando a IA replica raciocínios antigos em mercados que já mudaram
Muitos dos modelos que hoje orientam decisões automatizadas foram criados com base na ideia de que os mercados são eficientes. Isso significa, na prática, acreditar que os agentes têm acesso à informação, que agem racionalmente e que os preços refletem o valor real das coisas.
Essa visão funcionava bem para o tipo de economia que se estudava nos anos 1950 ou 60. Mas o mercado de hoje é outro. Ele é caótico, desigual, fragmentado. As empresas competem com múltiplos objetivos, enfrentam regulações sobrepostas, precisam responder a pressões externas e internas ao mesmo tempo. Decisões são tomadas com base em percepção, política, urgência, medo.
E mesmo assim, muitos sistemas de IA continuam tomando decisões como se ainda estivéssemos naquele modelo idealizado, onde tudo é comparável e todo mundo joga limpo. Os algoritmos não estão errados. Eles só estão respondendo a um mundo que já não existe.
Quando uma IA pressiona um fornecedor até o limite porque o modelo indica que “ainda é viável”, ela ignora as consequências de longo prazo. Quando prioriza sempre o menor preço, pode estar desvalorizando parceiros estratégicos que não cabem no modelo. Quando só reconhece valor onde há volume, deixa de negociar o que realmente diferencia uma operação.
A automação não precisa repetir o passado. Mas, para isso, ela precisa de alguém que questione os pressupostos que continuam sendo carregados sem revisão.
4. Quando o resultado é certo, mas o contexto está errado
A IA não precisa errar para comprometer a decisão. Às vezes, ela faz exatamente o que deveria, e ainda assim o resultado é ruim.
Isso acontece porque muitos sistemas automatizados foram programados para cumprir regras, atingir metas, seguir padrões. E fazem isso bem. Mas o que está por trás dessas metas e padrões muitas vezes não foi pensado para situações complexas. Foi desenhado para funcionar em condições ideais.
Imagine um algoritmo que seleciona fornecedores com base em preço, prazo e histórico de entrega. Ele pode encontrar a melhor opção disponível no papel. Mas e se essa escolha comprometer uma relação construída há anos? E se, no contexto atual, o fornecedor mais barato não tiver a mesma capacidade de resposta em momentos críticos?
Esses detalhes não aparecem no dashboard. Mas fazem toda a diferença no mundo real.
O desafio não é ensinar a IA a acertar a conta. É garantir que ela esteja respondendo à pergunta certa. Porque um erro de contexto, por mais bem executado que seja, continua sendo um erro.
Revisar a lógica é mais urgente do que acelerar a execução
Automatizar negociações não é um problema em si. O risco está em seguir negociando com lógicas que ninguém mais revisa. Lógicas que vêm de modelos antigos, mercados idealizados e decisões padronizadas demais para o mundo real.
A tecnologia pode decidir com velocidade. Mas é a arquitetura da decisão que define o que será perpetuado. E essa arquitetura, se continuar sendo reproduzida sem revisão crítica, transforma o que era promessa de eficiência em risco institucional silencioso.
Negociar com IA exige mais do que bons dados. Exige critério vivo. Exige entendimento de contexto. Exige a coragem de atualizar o raciocínio, e não apenas a interface.
Sua IA já negocia. Agora é hora de revisar o pensamento que ela está executando.
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