Não vamos falar apenas de tecnologia. Vamos explorar juntos o tempo, a história e o momento em que nós, como humanidade, atravessamos uma fronteira que nós mesmos criamos: fazer do trabalho o centro de nossas vidas.

Quando enfrentamos grandes mudanças tecnológicas, sempre parece que chegamos ao pior momento possível. As regras antigas ainda existem, mas já não fazem sentido. As novas ainda não estão claras. Neste vazio, encontramos resistência, conflito e medo. Mas é também aqui que surgem nossas ideias mais criativas sobre como lidar com tudo isso.

Costumamos chamar este momento de crise. No entanto, talvez seja apenas uma pausa entre duas formas diferentes de organizar nossa sociedade.

1. A encruzilhada da revolução cognitiva

“Chegamos ao pior melhor momento da história.” A frase soa paradoxal, mas descreve com precisão o instante em que uma nova geração de algoritmos arrancou da humanidade o último bastião que ainda parecia inexpugnável: o trabalho intelectual.

Se a Primeira Revolução Industrial libertou (ou expulsou) milhões dos campos e a Revolução Digital conectou bilhões à informação, a Revolução Cognitiva da inteligência artificial (IA) ameaça pulverizar o motor primário que faz o capitalismo girar: o emprego remunerado.

A síntese numérica ajuda a visualizar o abismo: na última meia década, 57 % dos cargos administrativos, 46 % do atendimento ao cliente e 35 % das funções de marketing já são considerados “altamente automatizáveis”. Nos EUA, as vagas para desenvolvedores de software desaceleraram 47 % (2020‑2025), enquanto as que exigem IA cresceram 306 %. Na União Europeia o cenário é similar: o número de especialistas em TIC subiu 59 % de 2013 a 2023, mas metade deles já opera lado a lado com modelos de IA que automatizam tarefas rotineiras e comprimem margens salariais.

A boa notícia? Produtividade recorde, custo marginal próximo de zero e novas formas de abundância. A má? Uma transição social potencialmente mais traumática do que qualquer crise provocada por tear mecânico ou fábrica fordista.

“A desagradável verdade é que a IA está vindo para o seu emprego, e para o meu também. O que ontem era tarefa fácil deixará de existir; o que era difícil será o novo fácil, e o impossível será o novo difícil. Se você não se tornar excepcional no que faz, terá de mudar de carreira em poucos meses.”

Micha Kaufman, CEO da Fiverr (2025)

2. O gatilho simbólico: Papa Leão XIV e a Rerum Novarum 2.0

Quando o recém‑eleito pontífice Robert Francis Prevost adotou o nome Leão XIV, a escolha pareceu mera homenagem histórica. Ele próprio, porém, explicou: “No fim do século XIX, Leão XIII ergueu a Rerum Novarum para defender a dignidade do trabalhador na primeira grande revolução industrial. Hoje precisamos de um compasso moral análogo para enfrentar a IA.”

Embora o Vaticano ainda não tenha publicado uma encíclica equivalente, o gesto ascendeu os radares da mídia: quando o líder espiritual de 1,3 bilhão de católicos associa seu pontificado aos riscos, e promessas, da automação cognitiva, torna-se evidente que a avalanche já não é mais hipotética.

3. Da destruição criativa ao déficit estrutural de empregos

Schumpeter descreveu a economia como um “processo de destruição criativa”; para cada ocupação que morre, outra surge. Mas, na era da IA, surge a dúvida: será que a balança continuará equilibrada?

Os dados indicam uma assimetria inédita. Plataformas como GitHub Copilot e Amazon CodeWhisperer já reduzem em 30% a 50% o tempo de codificação repetitiva. Robôs de diagnóstico na China superam clínicos gerais em precisão, e consultorias médicas projetam até 42 médicos-algoritmos em um único hospital 100% autônomo. Na cadeia de suprimentos, a Supply Brain já opera com agentes que identificam fornecedores, negociam preços e fecham pedidos sem supervisão humana, 24 horas por dia, com custo mínimo e sem viés.

A consequência é direta: se um software “juniorizado” entrega o que antes exigia um engenheiro pleno e um sênior, por que manter o “meio‑de‑tabela”? A chamada “classe plena” corre o risco de ser esmagada entre júniors + IA (mais baratos e agora competentes) e um seleto grupo de sêniors (mais caros, mas exponencialmente produtivos).

4. Quem cai primeiro? A anatomia da vulnerabilidade

Ao contrário do que muitos imaginam, trabalhadores braçais não são os primeiros na fila de risco. O desenvolvimento de robôs físicos ainda é caro e complexo, enquanto o software circula à velocidade da luz. Por isso, profissionais com conhecimento intermediário, redatores, analistas de dados, programadores web, contadores — são os alvos prioritários.

Ironicamente, profissionais de baixa renda em serviços presenciais, como faxina, construção civil e manutenção, recebem um pequeno “colchão” antes da chegada em massa de robôs colaborativos (cobots). Mas esse respiro é temporário: empresas como Boston Dynamics e a Figure AI já testam humanoides cuja curva de aprendizado reduziu de meses para dias.

5. Renda, capital e o Fundo Soberano de Algoritmos

Se as pessoas não ganham salário, quem compra as mercadorias que as próprias máquinas produzem? Desde Adam Smith sabemos que a demanda efetiva sustenta riqueza tecnológica. Uma solução possível seria um imposto global sobre lucros de IA, destinado a um Fundo Soberano que financie Renda Básica Universal (RBU).

A proposta dialoga com a visão do economista Yanis Varoufakis de “capital para todos” via participação acionária obrigatória nos gigantes digitais. Porém, aqui o escopo é mais amplo: uma tributação coordenada por órgãos multilaterais, com distribuição per capita sem créditos de renda – similar ao Alaska Permanent Fund.

A governança permanece como maior desafio. Quem definirá a alíquota? Como evitar corrupção ou boicote de países resistentes? A experiência da OCDE com impostos sobre big techs demonstra que consensos exigem décadas, não meses. No entanto, a urgência atual pode acelerar esse processo institucional como nunca antes.

6. Propósito além da carteira de trabalho

Quando a subsistência deixa de depender do contracheque, identidade precisa migrar para outro eixo. Arte, ciência cidadã, cuidado familiar, engajamento comunitário, estudo filosófico podem ganhar status de “trabalho reprodutivo do sentido”.

A história oferece precedentes inspiradores. Na Atenas clássica, o ócio (scholé) era fundamental para o florescimento intelectual; na Florença renascentista, patronos sustentavam artistas que não “trabalhavam” no sentido convencional. Hoje, essa transformação assume escala planetária e democrática: qualquer pessoa, não apenas elites, poderá se dedicar plenamente a atividades antes consideradas privilégios, seja aprendendo violoncelo aos 50 anos, restaurando ecossistemas locais ou criando fanfics interativas com LLMs.

7. Cicatrizes invisíveis: saúde mental na era pós‑laboral

Libertação não significa ausência de angústia. Estudos sobre desemprego estrutural já relacionam a perda de status à depressão, abuso de substâncias e até à mortalidade precoce. Com a transição IA, esses gatilhos tendem a se multiplicar.

Programas sugeridos por especialistas incluem:

  • Centros Comunitários de Aprendizagem – espaços makers + estúdios de mídia para requalificação informal.

  • Vouchers de Requalificação – versões ampliadas do GI Bill americano, abrangendo desde psicoterapia até cursos de IA aplicada.

  • Redução de Jornada em Etapas – antes de demitir, empresas transitam de 5×2 para 4×3, depois 3×4, permitindo adaptação gradual.

  • Saúde Mental Universal – consultórios virtuais 24/7 financiados pelo mesmo Fundo Soberano, combinando terapeutas humanos e chatbots empáticos.

Essas medidas não eliminam a dor da transição, mas ajudam a amenizar seu impacto.

 

8. Resistência, sabotagem e as guerras do carbono contra o silício

A saga do Uber contra os táxis serve de modelo: disputa por mercado, tensão, violência e, por fim, regulação. Agora substitua motoristas humanos por frotas autônomas e amplie o escopo para contabilidade, direito ou jornalismo, o caos será proporcional.

Sindicatos podem se reinventar como guildas de supervisão algorítmica ou optar para banir a IA de setores inteiros. Religiões também entram no embate: a teologia do trabalho protestante considera o trabalho como vocação moral. Remover esse pilar pode alimentar movimentos neoconservadores que enxergam na IA um “anticristo tecnocrático”.

E quanto à violência? Não faltam gatilhos: demissões em massa, queda brusca de salários, e concentração de lucros em poucos países. Guerras comerciais podem escalar para sabotagens físicas: incêndios em armazéns automatizados, sequestros de data centers e destruição de cabos submarinos.

 

9. Reescrevendo a escola para o século da IA

Se “empregabilidade” perde a centralidade, o que ensinar? Surgem cinco novas competências essenciais:

  1. Criatividade e pensamento divergente – arte, design, narrativa.

  2. Inteligência emocional – empatia, mediação, liderança compassiva.

  3. Ética e filosofia tecnológica – decidir o que construir antes de aprender como.

  4. Aprendizado contínuo – metacognição, desaprender‑reaprender.

  5. Pensamento sistêmico interdisciplinar – enxergar florestas, não árvores de código.

Para alcançar essas metas, as escolas precisam substituir provas fechadas por projetos reais. Os professores se transformam em mentores-facilitadores, e os currículos evoluem para módulos flexíveis, oferecidos como microcredenciais ao longo da vida.

10. Epílogo: uma utopia convulsiva

Karl Polanyi ensinou que mercados nunca se autorregulam sem gerar contra‑movimentos sociais. A era da IA reforça esse princípio: a automação cognitiva traz produtividade que beira a utopia, mas também convulsões que evocam distopias cyberpunk.

O pior melhor momento talvez seja justamente esta sobreposição: vivemos a ansiedade do fim dos empregos enquanto contemplamos, talvez pela primeira vez, a possibilidade real de libertar a humanidade do trabalho forçado pela subsistência. A ponte entre esses dois polos depende de escolhas coletivas: tributação, governança, requalificação e cuidado psíquico que nenhum algoritmo poderá fazer por nós.

É nesse vazio decisório que a figura de Leão XIV emerge como símbolo: há 134 anos, Rerum Novarum apontou um caminho para enfrentar a dor social provocada pela máquina a vapor. Hoje não basta repetir a fórmula, é necessário reafirmar que a dignidade humana permanece inegociável, mesmo quando o “emprego” perde seu protagonismo.

Se acertarmos, a IA será lembrada não como usurpadora do trabalho, mas como arquiteta de um novo pacto civilizatório no qual produzir deixa de ser condição de existir, e existir passa a significar criar, cuidar, refletir, amar. Se falharmos, a história registrará a maior concentração de riqueza e poder desde que o primeiro tear quebrou uma janela em Manchester.

Entre uma utopia libertadora e uma distopia excludente, a escolha (ainda) é humana.

Roma

Roma

Product Content Creator na Supply Brain.

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